Controle Multimalhas Aplicado ao Conversor Buck MCC

Como prometido, neste artigo irei abordar o conceito de controle multimalhas utilizando os princípios ensinados nos artigos anteriores. Essa técnica é muito empregada em aplicações como carregamento de baterias, acionamento de motores, inversores conectados à rede elétrica, retificadores com correção ativa do fator de potência, entre outras. Justamente por existir inúmeras aplicações para esse tipo de controle, torna-se impossível abordar todas elas em um único artigo.  Por isso, irei limitar o conteúdo desse texto ao conversor Buck.

Introdução

A Figura 1 ilustra o esquemático elétrico de um conversor Buck juntamente com o sistema de controle multimalhas. Observem que existe uma malha externa de tensão (destacada em azul) que, ao compensar o erro de tensão, fornece uma referência de corrente (iref) para a malha interna (em vermelho). Em outras palavras, o sistema de controle deve garantir um valor de corrente no indutor tal que a tensão de saída seja mantida constante no valor Vref.

A grande vantagem desse método em relação ao controle convencional da tensão de saída é a possibilidade de limitar o valor médio da corrente no indutor e, consequentemente, a corrente de saída, atuando assim como um sistema de proteção. Em alguns casos, como no carregamento de baterias, é importante garantir que essa corrente não ultrapasse o valor máximo de carga.

Figura 1. Conversor Buck com o sistema de controle multimalhas.

Partindo-se da Figura 1 é possível migrar para a representação por diagrama de blocos, conforme ilustrado na Figura 2. Notem que a malha interna de corrente se assemelha àquela estudada no artigo anterior dessa série [1], onde a corrente no indutor é controlada a partir da razão cíclica do conversor. Já a malha externa atua na corrente do indutor para controlar a tensão de saída, característica que ainda não estudamos.

Normalmente, nesse tipo de sistema, o projeto dos controladores se inicia pela malha interna, como veremos a seguir.

Figura 2. Diagrama de blocos do sistema de controle multimalhas.

Projeto da Malha de Controle da Corrente

Conforme mencionado acima, o projeto do controlador de corrente já foi visto em um artigo passado, mas por questão de comodidade irei resumi-lo aqui.

A Figura 3 mostra o diagrama de blocos da malha interna, responsável pelo controle da corrente.

Figura 3. Malha de controle da corrente.

A função de transferência que relaciona a corrente no indutor com a razão cíclica já foi definida em [2], e é dada por

G_{id}(s) = \frac{\hat{i}_L}{\hat{d}} = \frac{V_i\left(C_o s + \frac{1}{R_o} \right)}{L_oC_os^2 + \frac{L_o}{R_o} s + 1} (1)

O ganho do modulador PWM (KPWM) é definido por (2), onde Vp representa o valor de pico da portadora.

K_{PWM} = \frac{1}{V_p} (2)

Já o ganho do sensor de corrente (Ki) é dado por (3), sendo IB o valor base da corrente, isto é, o máximo valor lido pelo sensor.

K_{i} = \frac{1}{I_B} (3)

Dessa forma, a função de transferência de laço aberto não compensada, FTLAi_NC(s), é obtida segundo 

FTLA_{i\_NC}(s) = K_{PWM}.G_{id}(s).K_i (4)

Para garantir erro nulo ao degrau de referência, podemos utilizar um controlador do tipo Proporcional-Integral (PI), cuja função de transferência pode ser escrita como

C_i(s) = K_{c}\cdot \frac{(s + \omega_z)}{s} (5)

A partir da função de transferência de laço aberto não compensada e dos parâmetros de projeto, que são a margem de fase (MF) e a frequência de cruzamento (wc) desejadas para o sistema em malha fechada, é possível determinar o ganho Kc e a frequência do zero (wz) inserido pelo controlador, segundo as equações (6) e (7), respectivamente [3]

K_c = \frac{\omega_c}{\sqrt{\omega_c^2+\omega_z^2}}\frac{1}{|FTLA_{i\_NC}(j\omega_c)|} (6)
\omega_z = \frac{\omega_c}{\tan[MF - 90^\circ - \angle FTLA_{i\_NC}(j\omega_c)]}  (7)

Uma vez definido o controlador de corrente, partimos para o projeto do controlador de tensão.

Projeto da Malha de Controle da Tensão

Para o projeto da malha de tensão necessitamos da função de transferência que relaciona as variações na tensão de saída com as variações na corrente do indutor, visto que a tensão será controlada a partir da corrente, conforme discutido previamente. Essa função de transferência pode ser obtida relacionando-se outras duas funções de transferência já conhecidas, como apresentado em (8).

G_{vi}(s) = \frac{\hat{v}_o}{\hat{i}_L} = \frac{\frac{\hat{v}_o}{\hat{d}}}{\frac{\hat{i}_L}{\hat{d}}} = \frac{R_o}{R_oC_o s + 1} (8)

Também podemos encontrar essa relação por meio do modelo dinâmico de pequenos sinais, ilustrado na Figura 4. Observe que a relação entre \hat{v}_o e \hat{i}_L nada mais é do que a impedância equivalente entre o capacitor de saída e a resistência de carga, resultando em

\frac{\hat{v}_o}{\hat{i}_L} = \frac{1}{s C_o}// R_o = \frac{\frac{1}{s C_o}.R_o}{\frac{1}{s C_o} + R_o} = \frac{R_o}{R_oC_o s + 1} (9)

Figura 4. Modelo de pequenos sinais do conversor Buck, obtido em [2].

O próximo passo é encontrar a função de transferência de laço aberto da malha de tensão, a fim de se projetar o controlador. No entanto, isso não é tão trivial uma vez que a malha interna de corrente deve ser incluída nessa análise. Para contornar esse problema, é comum projetar a malha de tensão muito mais lenta do que a malha de corrente, de modo que elas se tornem dinamicamente desacopladas. Dessa forma, a malha interna pode ser simplificada por um simples ganho, já que a malha externa não “enxerga” suas variações.

Em termos matemáticos, isso pode ser comprovado pela função de transferência de malha fechada da corrente, FTMFi(s), apresentada em (10). Para baixas frequências, ponto de operação da malha de tensão, tem-se  C_i(s).K_{PWM}.G_{id}(s).K_i >> 1 (isso porque o controlador de corrente, Ci(s), é projetado para garantir alto ganho em baixas frequências, já que queremos rastrear uma referência contínua sem erro de regime permanente), logo a função de transferência se resume a (11) e o diagrama de blocos é simplificado conforme a Figura 5.

FTMF_i(s) = \frac{C_i(s).K_{PWM}.G_{id}(s)}{1 + C_i(s).K_{PWM}.G_{id}(s).K_i} (10)
FTMF_i(s)|_{s \to 0} = \frac{1}{K_i} (11)

 

Figura 5. Diagrama de blocos da malha de tensão.

Assim sendo, a função de transferência de laço aberto não compensada da malha de tensão é facilmente obtida por

FTLA_{v\_NC}(s) = \frac{1}{K_i}\cdot G_{vi}(s)\cdot K_v (12)

Agora, seguindo o mesmo procedimento adotado para o projeto do controlador de corrente, é possível obter os parâmetros do controlador de tensão. Para ficar mais claro, vamos partir para um exemplo numérico.

Exemplo Numérico

Nesse exemplo vamos adotar os mesmos parâmetros do conversor Buck estudado nos artigos anteriores, os quais estão resumidos na Tabela 1.

Tabela 1. Principais parâmetros do conversor Buck.

Malha de Corrente

Sabendo que a malha de corrente deve ser rápida, vamos definir a sua frequência de cruzamento uma década abaixo da frequência de chaveamento. Isso garante uma dinâmica rápida e, ao mesmo tempo, atenua o conteúdo de alta frequência proveniente da comutação dos interruptores. Além disso, escolheremos uma margem de fase de 60° para garantir uma boa estabilidade ao sistema. Os parâmetros de projeto definidos para a malha de corrente estão resumidos na Tabela 2. 

Tabela 2. Parâmetros de projeto do controlador de corrente.

Assim como feito nos artigos anteriores, vamos adotar o ganho do modulador PWM unitário, de modo que a razão cíclica (saída do controlador) varie entre 0 e 1. Quanto ao ganho do sensor de corrente é necessário determinar a corrente base IB. Nesse caso, a corrente nominal (máxima corrente de operação) vale 5 A, segundo os dados da Tabela 1. Considerando uma folga de 50%, devido aos possíveis transitórios, temos que I_B = 1,5 \cdot 5~A = 7,5~A. Dessa forma, concluímos que K_i = 1 / (7,5~A).

Definidos os ganhos, podemos determinar os coeficientes do controlador PI com base na função de transferência de laço aberto, dada por (4), e nos parâmetros de projeto da Tabela 2, o que resulta em

\omega_z = \frac{\omega_c}{\tan[MF - 90^\circ - \angle FTLA_{i\_NC}(j\omega_c)]} = 10800~\text{[rad/s]}  (13)
K_c = \frac{\omega_c}{\sqrt{\omega_c^2+\omega_z^2}}\frac{1}{|FTLA_{i\_NC}(j\omega_c)|} = 1,521 (14)

Na Figura 6 é possível verificar a resposta em frequência do sistema compensado. Observem que os resultados obtidos estão de acordo com os parâmetros de projeto estipulados inicialmente. Sendo assim, podemos passar para o próximo passo, que é validar o desempenho da malha de controle via simulação.

Figura 6. Resposta em frequência do sistema compensado.

Nesse caso, vamos validar apenas a malha de controle de corrente. Para isso, utilizaremos o modelo da Figura 7, o qual foi desenvolvido para simular o conversor no software PSIM®. Na Figura 8 podemos analisar a resposta do sistema frente a uma variação na referência de corrente de 3 A para 5 A em t = 12 ms, e de 5 A para 3 A em t = 18 ms. Verifiquem que o sistema foi capaz de seguir corretamente a referência imposta, validando assim o projeto do controlador.

Figura 7. Modelo de simulação utilizado no software PSIM® para validar a malha de controle da corrente.
Figura 8. Resultado de simulação para variações na referência de 3 A para 5 A e vice-versa.

Malha de Tensão

Para o projeto da malha externa de tensão precisamos definir o ganho do sensor de realimentação. Inicialmente, vamos escolher a tensão base (VB) do sistema, que está relacionada com a máxima tensão lida pelo sensor. Uma vez que queremos regular a tensão de saída em 20 V, podemos considerar novamente uma folga de 50% na leitura do sensor, o que nos dá VB = 30 V e, consequentemente, Kv = 1/(30 V).

Tendo em vista que a malha de tensão deve ser mais lenta do que a malha de corrente, para que elas se tornem dinamicamente desacopladas, podemos selecionar uma frequência de cruzamento uma década abaixo daquela escolhida para a malha de corrente (esse valor já é suficiente para desacoplar as malhas, mas poderíamos optar por uma frequência ainda menor dependendo da aplicação). Portanto, de acordo com a função de transferência de laço aberto, dada por (12), e considerando uma margem de fase de 60°, obtemos os seguintes coeficientes para o controlador de tensão

\omega_z = \frac{\omega_c}{\tan[MF - 90^\circ - \angle FTLA_{v\_NC}(j\omega_c)]} = -2633~\text{[rad/s]}  (15)
K_c = \frac{\omega_c}{\sqrt{\omega_c^2+\omega_z^2}}\frac{1}{|FTLA_{v\_NC}(j\omega_c)|} = 0,432 (16)

Observem que a frequência do zero (\omega_z) resultou num valor negativo, o que significa que o compensador não é válido para os parâmetros de projeto desejados. Como podem verificar na Figura 9(a), o sistema compensado se tornou instável, visto que a margem de fase é negativa. Quando isso ocorre devemos selecionar novos parâmetros e reprojetar o controlador. Por exemplo, podemos manter a frequência de cruzamento uma década abaixo da malha de corrente e aumentar a margem de fase para 100º, obtendo-se assim: K_c = 0,251 e \omega_z = 4865~\text{rad/s}. Analisando agora o diagrama de Bode da Figura 9(b), podemos perceber que o sistema se tornou estável, já que ambas as margens de fase e de ganho são positivas. Os parâmetros finais do controlador de tensão estão dispostos na Tabela 3.

Figura 9. Diagrama de Bode da malha de tensão compensada: (a) controle instável e (b) controle estável.

Tabela 3. Parâmetros finais do controlador de tensão.

Para validar a malha de tensão, utilizei o modelo de simulação representado na Figura 10, o qual contempla o conversor Buck e a estratégia de controle multimalhas. Percebam que um limitador de corrente foi inserido na saída da malha externa de tensão. Este tem como objetivo impedir que a corrente de saída extrapole os limites máximos estabelecidos, como veremos nos próximos resultados.

Figura 10. Modelo de simulação do conversor Buck para validar o controle multimalhas no software PSIM®.

Na Figura 11 temos a resposta dinâmica do sistema frente a variações na carga de 100% para 75% e vice-versa. Notem que o controle foi capaz de regular a tensão na referência desejada de 20 V, mesmo após os transitórios. Já na Figura 12, podemos analisar o comportamento do sistema diante de uma sobrecarga de 67%, i.e., a carga aumentou para 167 W mas a potência nominal do conversor é de apenas 100 W. Para ficar mais claro a atuação do controle multimalhas, resolvi compará-lo com o controle de tensão realizado com apenas uma malha, o qual foi apresentado em [4]. Neste teste, eu defini a corrente máxima de saída do conversor em 6,5 A, ao limitar a saída do controlador de tensão no sistema multimalhas. Em razão disso, observem nas curvas em vermelho que, após ocorrer a sobrecarga (em t = 0,014s), a corrente é mantida no valor máximo de 6,5 A, enquanto que a tensão se estabiliza em um valor abaixo da referência. Por outro lado, o controle de malha única é capaz de regular a tensão novamente para 20 V, porém, a corrente de saída aumenta para 8,35 A. Dependendo da aplicação, esse aumento pode provocar danos ao conversor, como a queima dos semicondutores, tendo em vista que o mesmo foi projeto para uma corrente nominal de 5 A.

Figura 11. Resposta dinâmica do conversor em malha fechada diante de variações na carga de 100% para 75%, e vice-versa.
Figura 12. Comparação entre as respostas do sistema com malha única e do sistema com múltiplas malhas, diante de uma sobrecarga de 65%.

Conclusão

Este artigo teve como objetivo abordar o conceito de controle multimalhas, adotando para isso o conversor Buck estudado nos artigos anteriores. De forma resumida, o projeto desse tipo de controle se inicia pela malha interna de corrente. Depois de validada via simulação, parte-se para o projeto da malha externa de tensão. É importante lembrar que a malha de tensão deve ser mais lenta do que a de corrente. Sua frequência de cruzamento precisar estar, pelo menos, uma década abaixo da frequência de cruzamento da malha interna, a fim de garantir o desacoplamento dinâmico entre elas.

Uma das vantagens do uso do controle multimalhas ficou destacada nos resultados de simulação. Tal estratégia protege o circuito quando ocorre um aumento abrupto na carga, ou até mesmo um curto-circuito, ao limitar a corrente máxima de saída do conversor. Isso é muito usual em fontes de alimentação. Todavia, existem outras aplicações que necessitam desse tipo de controle, não só pela sua característica de proteção. Em um post futuro irei explicar o funcionamento de um carregador de baterias, utilizando esse conceito.

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