Uma Revisão Sobre Baterias: Parte III
|Olá caro leitor.
Muitas vezes precisamos simular o comportamento de certos componentes ou dispositivos antes de irmos de fato para a prática. Esse procedimento é essencial para evitar uma série de problemas e, assim, reduzir o tempo de desenvolvimento e o custo.
Com as baterias não é diferente. Neste artigo vou apresentar dois modelos elétricos capazes de emular o comportamento estático-dinâmico desses dispositivos. À primeira vista podem parecer complexos, mas vocês vão ver que com algumas aproximações é possível simplificar bastante os modelos. A grande dificuldade, na verdade, é realizar os ensaios experimentais para obtenção de seus parâmetros. Contudo, tais procedimentos não serão discutidos aqui (por enquanto).
Para não estender demasiadamente o artigo, resolvi abordar apenas o modelo da bateria de chumbo-ácido e da bateria de íon-lítio, já que estas são as mais utilizadas atualmente nas aplicações da Eletrônica de Potência.
- Introdução
- Modelo Elétrico para Baterias de Chumbo-Ácido
- Modelo Elétrico das Baterias de Íon-Lítio
- Conclusão
- Referências
Antes de irmos ao que interessa, recomendo ler os artigos anteriores dessa série, caso você ainda não tenha lido. Isso irá facilitar o seu entendimento no decorrer deste texto.
Sem mais delongas, vamos ao conteúdo!
Introdução
Embora as reações eletroquímicas descrevam o funcionamento da bateria do ponto de vista químico, estas não representam o seu comportamento estático-dinâmico. Em razão disso, precisamos recorrer aos diversos modelos elétricos disponíveis na literatura [1], cada um com seu próprio grau de complexidade, ficando o critério de escolha dependente do tipo de aplicação.
No geral, para os profissionais da engenharia elétrica, os modelos baseados em fontes de tensão, resistores e capacitores, cuja precisão se situa entre 1% e 5% de erro, são mais intuitivos e fáceis de manipular comparados aos modelos analíticos, principalmente quando utilizados em simuladores [2]. Uma revisão detalhada a respeito desses modelos, bem como a comparação entre seus desempenhos, pode ser consultada em [3, 4].
Modelo Elétrico da Bateria de Chumbo-Ácido
O modelo elétrico escolhido para simular as baterias de chumbo-ácido está representado na Figura 1. Esse circuito se assemelha ao modelo proposto em [5] e estudado em [6], exceto pela ausência do ramo parasita e pela presença do diodo D1. Esse diodo foi inserido pelo fato da resistência R2 se tornar desprezível durante a descarga da bateria.
Como demonstrado a seguir, os elementos do circuito equivalente são dependentes das condições de operação, tais como temperatura e estado de carga [6]. É importante mencionar que os parâmetros do circuito são obtidos por meio de ensaios experimentais, os quais envolvem inúmeros processos de carga e descarga. Os valores apresentados nesta seção se baseiam em uma bateria típica de 63 Ah [7]. Entretanto, para fins de simulação que não exigem grande precisão, estes também podem ser adotados para baterias com capacidades diferentes.
Tensão de Circuito Aberto (Em)
A expressão que descreve a tensão de circuito aberto (Em) é dada por
(1) |
onde:
– tensão de circuito aberto considerando a bateria completamente carregada (i.e. SOC = 1).
– constante com valor típico de 0,004027 V/°C.
– temperatura do eletrólito em ºC. Note que (273 + T) resulta no valor da temperatura em Kelvin.
– estado de carga normalizado entre 0 e 1.
O estado de carga é determinado conforme (2), onde SOC0 representa o estado de carga inicial, im(t) é a corrente de carga/descarga, e Q é a capacidade nominal em coulomb (1 Ah = 3600 C) [7]. A Figura 2 mostra o circuito de simulação para o cálculo do estado de carga e a Figura 3 ilustra o modelo utilizado para o cálculo da tensão Em.
(2) |
Resistência dos Terminais (R0)
A resistência vista nos terminais da bateria é aproximada por R0 segundo (3), onde R00 é o valor de R0 para SOC = 1 e A0 é uma constante. Essa resistência é considerada constante para qualquer valor de temperatura, mas varia com o estado de carga. Na simulação, todavia, o seu valor será considerado constante e de valor R00, uma vez que a sua variação é relativamente pequena.
(3) |
Resistência do Ramo Principal (R1)
A resistência R1 aumenta exponencialmente e depende do estado de carga da bateria, conforme
(4) |
em que:
– tipicamente vale 0,1 .
(valor típico).
O circuito para implementação desse parâmetro via simulação está ilustrado na Figura 4.
Resistência Interna (R2)
A resistência R2 varia exponencialmente com o aumento do SOC e também depende da corrente de carga, como segue
(5) |
onde:
– valor constante em , tipicamente 0,015 .
.
.
– corrente medida nos terminais da bateria.
– corrente nominal em A.
Conforme consta em [6], R2 se torna desprezível para correntes de descarga. Por esse motivo, o diodo D1 foi inserido no modelo para “bypassar” esse componente durante a descarga da bateria. O circuito que implementa o cálculo de R2 via simulação está representado na Figura 5.
Capacitância do Ramo Principal (C1)
A capacitância C1 representa a capacidade da bateria em armazenar energia e é responsável por emular a sua dinâmica. O seu valor pode ser aproximado por [8]:
(6) |
onde En é a capacidade energética da bateria em kWh, dada pelo produto entre a tensão nominal e a capacidade nominal em Ah. Já Voc,max e Voc,min são as tensões de circuito aberto nas condições de carga completa e descarga completa, respectivamente. Esses valores normalmente são disponibilizados no manual do fabricante.
Na prática, porém, a capacidade da bateria varia com a corrente de descarga e com a temperatura. Uma maneira de implementar essa não idealidade no circuito pode ser vista em [6], onde os autores utilizaram uma look-up table (LUT) para modelar a influência das variações térmicas. Mas, com o intuito de simplificar o modelo, vamos considerar o valor de C1 constante, de acordo com a expressão (6).
Circuito Completo para Simulação do Modelo da Bateria de Chumbo-Ácido
Para implementar o circuito equivalente da bateria de chumbo-ácido no software PSIM®, vamos utilizar fontes controladas de tensão e de corrente, cujos valores são obtidos a partir dos circuitos apresentados nas seções anteriores. A Figura 6 mostra o diagrama resultante dessa implementação.
Resultados de Simulação para o Modelo da Bateria de Chumbo-Ácido
A fim de validar o modelo elétrico descrito anteriormente, realizei alguns testes de carga e descarga via simulação, conforme apresentado a seguir. Para todos os casos considerei os parâmetros contidos na Tabela 1. Se você quiser testar o modelo com uma bateria diferente, basta alterar a capacidade (Q), a tensão de circuito aberto (Em0) e a capacitância (C1). Mas lembrando que isso só é aceitável para testes que não necessitam de grande precisão. Caso contrário, é importante realizar os devidos ensaios experimentais para obter os parâmetros corretamente.
Tabela 1. Parâmetros usados para simular o modelo da bateria de chumbo-ácido
O teste de descarga da bateria foi realizado acoplando-se uma fonte de corrente constante na saída do modelo. A Figura 7 mostra os resultados obtidos para diferentes correntes de descarga. Evidentemente, quanto maior for a corrente, mais rápido a bateria irá se descarregar.
Após testado o modelo elétrico da bateria perante uma descarga, realizei a simulação do processo de carga. Nesse caso, considerei a bateria inicialmente descarregada e apliquei uma corrente com polaridade oposta em seus terminais. A Figura 8 mostra o resultado obtido, o qual representa a curva característica Tensão vs. SOC para a bateria de chumbo-ácido. A corrente de carga utilizada foi de 1 A.
Modelo Elétrico da Bateria de Íon-Lítio
O modelo elétrico selecionado para simular a bateria de íon lítio está representado na Figura 9. Esse modelo foi proposto inicialmente por [2] e é conhecido na literatura como modelo de Dupla Polarização (DP). Isso, porque os dois pares RC representam o comportamento de dois processos dinâmicos diferentes, os quais ocorrem dentro da bateria: polarização por ativação e polarização por concentração [1, 9]. Nesse contexto, o ramo RTLCTL apresenta uma constante de tempo elevada, para modelar a dinâmica lenta, enquanto o ramo RTSCTS possui uma constante de tempo baixa, emulando a dinâmica rápida.
Capacidade e Estado de Carga
A capacidade útil da bateria, que é reduzida ao longo do tempo de utilização, pode ser emulada por um capacitor (Ccap), um resistor de autodescarga (RDch) e um resistor série equivalente (a soma de RS, RTS e RTL). O capacitor Ccap carregado representa toda carga armazenada na bateria, sendo calculado por
(7) |
onde Qn equivale à capacidade nominal da bateria em Ah e f1(ciclos) e f2(temp) são fatores de correção relacionados ao número de ciclos e à temperatura, respectivamente. Para o propósito deste artigo, tais fatores serão desconsiderados.
Resistor de Autodescarga (RDch)
O resistor RDch, por sua vez, é usado para caracterizar a perda de energia por autodecarga, que ocorre quando as baterias são armazenadas por um longo período de tempo. Teoricamente, esse valor depende do estado de carga (SOC), da temperatura e do número de ciclos. Mas, na prática, RDch pode ser simplificado por um resistor de valor elevado, ou até mesmo ignorado, já que seu efeito só é percebido no longo prazo [2].
Tensão de Circuito Aberto (VOC)
A fonte de tensão VOC representa a tensão de circuito aberto, a qual possui uma relação não linear com o estado de carga. Essa relação é uma das características mais importantes do comportamento de qualquer bateria e deve ser considerada no modelo. Para isso, utilizamos uma fonte de tensão controlada cujo valor depende do estado de carga obtido pelo circuito da Figura 9(a).
Demais Parâmetros do Modelo
Os demais parâmetros do modelo elétrico, assim como a expressão da tensão de circuito aberto, são obtidos por meio de ensaios experimentais, conforme descrito em [10]. Apesar do modelo apresentar uma boa acurácia, esse processo de extração dos parâmetros não é nada simples. Para contornar isso, vamos adaptar os parâmetros de uma bateria de íon-lítio polímero modelo TCL PL-383562 850 mAh, os quais já foram obtidos em [2]. Obviamente, tal procedimento não é o mais indicado, mas para o propósito de simular a bateria por apenas alguns segundos, essa aproximação é suficientemente válida. Caso o leitor necessite de um modelo mais preciso, aconselho realizar todos os ensaios.
Por meio de interpolação das curvas práticas obtidas em [2], os autores identificaram seis funções que representam o comportamento dos parâmetros do modelo, descritas em (8) até (13). Convém salientar que na prática tais parâmetros dependem de múltiplas variáveis, tais como estado de carga, corrente, temperatura e número de ciclos. Entretanto, para baterias de íon-lítio, estes podem ser aproximados como funções apenas do estado de carga (SOC).
(8) |
(9) |
(10) |
(11) |
(12) |
(13) |
A fim de adaptar os parâmetros acima para a bateria de nosso interesse, vamos adotar alguns fatores de correção, como proposto em [11]. O fator rV, descrito em (14), multiplica a expressão (8); o fator rR, apresentado em (15), multiplica (9), (10) e (12); já o fator rC, definido por (16), multiplica (11) e (13).
(14) |
(15) |
(16) |
Nas equações anteriores, nserie indica o número de células em série e nparalelo o número de células em paralelo, referente ao banco de baterias adotado. Qcel-pack representa a capacidade em Ah de uma das células do banco, enquanto QTCL-PL-383562 representa a capacidade em Ah da célula TCL PL-383562. Alternativamente, podemos substituir nparalelo ·Qcel-pack pela capacidade total do banco.
Cabe mencionar ainda que, de acordo com os resultados obtidos em [2], podemos adotar todos os parâmetros RC constantes para uma faixa entre 20% e 100% do estado de carga. Isso implica em desconsiderar a parcela exponencial de (9) até (13), o que simplifica consideravelmente o modelo. Nessas condições, o cálculo da tensão de circuito aberto pode ser implementado via simulação por meio do diagrama da Figura 10 (notem que o fator de correção, rV, multiplica todos os ganhos). O estado de carga (SOC), por sua vez, pode ser determinado com base no circuito da Figura 9(a), ou simplesmente como indicado na Figura 2.
Circuito Completo para Simulação do Modelo da Bateria de Íon-Lítio
Tendo em vista que na maioria das aplicações com baterias de íon-lítio é recomendável que o estado de carga opere entre 20% e 90%, a fim de se preservar a vida útil do dispositivo, então vamos considerar todos os resistores e capacitores do modelo constantes, conforme discutido anteriormente. Isso implica em omitir a parcela dinâmica imposta pelo termo exponencial. Sendo assim, o modelo resultante para simulação das baterias de íon-lítio pode ser visto na Figura 11.
Resultados de Simulação para o Modelo da Bateria de Íon-Lítio
Para fins de demonstração do funcionamento do modelo, considerei um banco de baterias composto por sete módulos de íon-lítio modelo 8224S da Backett Energy System® conectados em série, cujos parâmetros estão exibidos na Tabela 2.
Tabela 2. Especificações do banco de baterias adotado para simular o modelo da bateria de íon-lítio.
Com base nas especificações da tabela acima, obtive: , e . Esses fatores foram então aplicados às equações (8) até (13) para adaptá-las aos parâmetros elétricos do banco de baterias escolhido.
Assim como no exemplo anterior, simulei inicialmente o processo de descarga do banco, acoplando uma fonte de corrente constante na saída do circuito. Os resultados obtidos para diferentes taxas de descarga podem ser vistos na Figura 12(a). A curva característica de descarga, a qual relaciona a tensão com o estado de carga, está apresentada na Figura 12(b). Essa curva foi obtida para uma taxa de descarga de 1C, o que corresponde à corrente necessária para descarregar completamente a bateria em uma hora. Observem na referida figura que a partir de 10% do SOC, aproximadamente, a tensão decai rapidamente indicando a descarga total da bateria. Na prática, essa região de operação deve ser evitada para preservar a vida útil do dispositivo.
Para simular o modelo elétrico da bateria diante de um processo de carga, considerei o banco inicialmente descarregado e inverti a polaridade da fonte de corrente conectada em seus terminais. Como resultado, determinei a curva típica de carga para as baterias de íon-lítio, conforme evidenciado na Figura 13.
Conclusão
Neste artigo apresentei dois modelos elétricos capazes de emular o comportamento estático-dinâmico das baterias de chumbo-ácido e de íon-lítio. Ao longo do texto tentei abordar as principais características dos modelos escolhidos, bem como as estratégias para implementá-los em simulação. Embora eu tenha usado o software PSIM®, os mesmos procedimentos podem ser adotados para outros softwares, como o Simulink®.
Bom, chegamos então ao final dessa série de artigos sobre baterias. Espero ter contribuído de alguma forma para o entendimento de vocês a respeito desses dispositivos, que estão cada vez mais sendo utilizados na eletrônica de potência (e.g. sistemas de geração distribuída, veículos híbridos/elétricos, nobreaks, etc). Se você ficou com alguma dúvida ou quer deixar alguma sugestão/crítica, fique à vontade para comentar aqui embaixo.
Referências
[1] H. He, R. Xiong, and J. Fan, “Evaluation of lithium-ion battery equivalent circuit models for state of charge estimation by an experimental approach,” Energies 2011, v. 4, p. 582-598; DOI:10.3390/en4040582, 29 March 2011.
[2] M. Chen and G. Rincon-Mora, “Accurate electrical battery model capable of predicting runtime and I-V performance,” IEEE Transactions on Energy Conversion, v. 21, n. 2, p. 504-511, 2006.
[3] H. He, R. Xiong, H. Guo, and S. Li, “Comparison study on the battery models used for the energy management of batteries in electric vehicles,” Energy Conversion and Management, ELSEVIER, v. 64, p. 113-121, Dec. 2012.
[4] X. Hu, S. Li, and H. Peng, “A comparative study of equivalent circuit models for li-ion batteries,” Journal of Power Sources, ELSEVIER, v. 198, p. 359-367, Jan. 2012
[5] M. Ceraolo. “New dynamical models of lead-acid batteries”. IEEE Transactions on Power Systems, vol. 15, no. 4, nov. 2000.
[6] R. A. Jackey. “A simple, effective lead-acid battery modeling process for electrical system component selection”. SAE World Congress, 2007.
[7] I. Barbi. “Fontes Renováveis de Energia, Sistemas de Armazenamento e Microrredes de Corrente Contínua”. Notas de aula, 2018.
[8] R. Kushwaha and B. Singh. “An EV battery charger based on PFC Sheppard Taylor Converter.” IEEE National Power Systems Conference (NPSC), 2016.
[9] D. Cittanti, A. Ferraris, A. Airale, S. Fiorot, and S. Scavuzzo, “Modeling li-ion batteries for automotive application: a trade-off between accuracy and complexity,” International Conference of Electrical and Electronic Technologies for Automotive, Jun. 2017.
[10] S. Abu-Sharkh and D. Doerffel, “Rapid test and non-linear model characterization of solid-state lithium-ion batteries,” Journal of Power Sources, vol. 130, no. 1-2, pp. 266–274, 2004.
[11] G. de Freitas Lima, “A modified flyback converter applied in capacitive power transfer for electric vehicle battery charger,” (Dissertação), Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis – SC, 2019.
Olá Caio. Eu estou acompanhando essa série de artigos que você fez sobre baterias e especificamente, no terceiro, eu não consigo acompanhar as equações, de forma que elas não aparecem no meu navegador. Ademais, muito obrigado pela excelente leitura!
Na figura 11, entre o bloco somador e o bloco de integral, há um bloco que não consigo identificar dentro do PSIM. Gostaria de mais detalhes sobre o modelo desenvolvido. Ademais, parebens pelo trabalho.